Neves de Sousa foi bem mais do que um jornalista desportivo. À primeira vista podemos pensar que teve alguma dificuldade em escolher a área onde dedicar a sua vida profissional, tantos foram os seus trabalhos no início da vida, mas a escrita falou mais alto, levando-o à ribalta do conhecimento. Rigoroso, muito rigoroso, pautou a sua vida pela informação certa e incisiva. Sem dó nem piedade, escrevia o que lhe ia na alma. E escrevia muito. Por paixão, mas também para que nada faltasse aos seus onze filhos. Na verdade dez, porque o primogénito morreu após sete horas de vida, mas para Neves de Sousa, ele esteve sempre presente, e à pergunta: “Quantos filhos?”, respondia prontamente: “Onze”. Um numero de bem futebolístico, por sinal.
Alfacinha de gema, nasceu a 4 Outubro de 1930. Bom aluno, estudou até ao sétimo ano. Trabalhos teve inúmeros até que um belo dia, com a cunha da filha do reitor, foi até à grande revista da altura, a “Flama”, para conseguir um trabalho mais condizente com o seu gosto. Pediram-lhe o impossível: uma entrevista com o Felix, jogador benfiquista que ninguém entrevistar. Neves de Sousa tinha 19 anos e muita garra. Conseguiu-o e a partir daí nunca mais parou. Dava então os primeiros passos na sua longa carreira jornalística.
Escrevia muito, imenso. Dizia que tinha de conseguir um estilo próprio. Marcar o seu nome. E tanto fez que conseguiu. Os críticos diziam que “escrevia com vinagre, era acérrimo”. Saía da Flama diretamente para o Parque Mayer, onde as noites prolongavam o dia até tarde. Entretanto, numa noite intensa, quando os vapores tomaram conta dos sentidos, Neves de Sousa mais uma serie de amigos, deram-se como voluntários para a Índia, para defender aquilo que Salazar insistia em manter português. E lá teve de ir, voluntariado à força, como gostava de dizer, regressando dois anos, oito meses, catorze dias e onze horas depois, tendo à sua espera a mãe e uma madrinha de guerra, Maria José, com quem casou dois meses depois. Em 1959 nasce o primeiro filho que teve vida breve. Em 1960 nasce o Zé Manuel, o mais velho, ao qual sucedem mais nove. Trabalho e mais trabalho para sustentar a família cada vez maior, no entanto, ninguém poderá provar que caso não tivesse tantos filhos, teria trabalhando menos, tal o afinco pela sua profissão. Neves de Sousa marcou o jornalismo português, ao qual se dedicou por mais de 40 anos. Escrevendo em inúmeros órgãos de comunicação social do país, também trabalhou para algumas rádios. Extrapolou o país, escrevendo em Noticias (Angola) e Cruzeiros (Brasil) e foi o primeiro comentador radiofónico de futebol em toda a Ásia na Emissora de Goa.
Para além do jornalismo, também esteve ligado ao teatro e ao mundo do espetáculo como organizador da Grande Noite do Fado durante anos consecutivos, entre outras atividades.
Era um homem metódico e organizado. Em blocos de apontamentos deixados, descobrimos que fez 357 viagens de avião, conheceu 63 países, foi 52 vezes a Espanha, 35 à França e 31 à Alemanha e por aí fora. Organizou 26 Grandes Noites do Fado, e comentou 36 Voltas a Portugal em Bicicletas.
Mas embora passasse imenso tempo a escrever, a verdade é que havia um outro lado deste jornalista menos conhecido, mas sobejamente importante para ele: a sua família, com quem partilhava um pedaço de paraíso na sua casa do Alto da Barra, em Oeiras. E a família, pelo seu lado, compreendia as suas ausências, tentando mima-lo quando estava presente: “Fazíamos-lhe os mimos todos, o peixe sem espinhas, a carne cortadinhas…”. A dedicação que Neves de Sousa tinha ao trabalho era, para Maria José, perfeitamente normal e aceitável, uma vez que para ela “só compreendo o jornalismo assim, com total dedicação.”, e, mais do que isso, “amar é aceitar as escolhas da outra pessoa”.
Amante de uma boa conversa, Maria José relembra que as vezes que foram jantar fora, para uma conversa a dois, um estar mais a sós, passado pouco tempo, a mesa virava uma verdadeira tertúlia, avolumando-se pessoas á sua volta e um nunca mais acabar de assuntos.
Não teve tempo para ir ao médico aquando dos primeiros sintomas da doença, afinal, a Volta a Portugal falava mais alto. Só depois é que se viu resignado ao hospital e mesmo assim, da sua cama, fazia a crónica para a Rádio Alfa de Paris. Maria José ia todos os dias, às sete da manhã, dar-lhe os jornais, fazer-lhe companhia.
E este homem que fez tropa na Índia, casou com uma madrinha de guerra, teve 11 filhos, trabalhou no Parque Mayer, ajudou a trazer a Portugal, Duke Ellington, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Sammy Davis Jr, que organizou anos a fio a Grande Noite do Fato, mas que acima de 1995. Para trás, deixou muitos amigos que não hesitaram em escrever sobre ele nos grandes jornais do país o que lhes ia no coração, como por exemplo Albano Matos: “Ninguém ficava indiferente ao que ele escrevia, porque era generoso e injusto, excessivo e magnânimo, atirador solitário e nadador-salvador, bombeiro e pirómano”, resumindo, este homem marcou o jornalismo desportivo.
Houve uma trovoada após a morte de Neves de Sousa. Os filhos viraram-se uns para os outros e disseram: “Pronto! O pai já está lá em cima a arranjar confusão. Ou então encontrou um tipo do Benfica pelo caminho e já estão a discutir”.
Até o céu deve ter passado a ter um jornal desportivo!
ROCHA, Carla – «Neves de Sousa: o franco-atirador do jornalismo desportivo português». Conhecer Oeiras nº 8. Oeiras: Câmara Municipal de Oeiras, 2005